Cósmico convívio com a matéria
Natalia Rezente (2023)
Sobrevivemos enquanto humanidade, na Terra, por um mecanismo que nos permitiu sonhar e fabular modos de vida: imitamos as redes de interação das plantas, dos insetos, dos seres microscópicos e dos animais de outras espécies. Foi assim que desenvolvemos uma multiplicidade de artifícios técnicos, como os têxteis e a medicina, cujas origens, podemos imaginar, remontam à observação dos ninhos dos pássaros e à escuta xamânica dos espíritos dos vegetais. As obras da artista Thatiane Mendes se nutrem deste emaranhado de relações entre diferentes existências ‒ sua produção propõe um convívio cósmico que nos recorda, por muitos meios, que somos corpo-colônia de seres e saberes, e pertencemos a um ciclo ininterrupto e recombinado de metamorfoses.
O convívio é cósmico porque Thatiane transita do micro ao macro, do imediato ao latente, do ancestral ao contemporâneo, desdobrando-se entre mundos particulares e compartilhados sem esquecer que toda categorização se trata de uma perspectiva limitada e hierarquizante. Ao eleger a cozinha como laboratório alquímico e a lâmina microscópica como jardim familiar, a artista faz frente à desvalorização das epistemologias tradicionais, produzidas e preservadas por corpos historicamente invisibilizados (e aniquilados), especialmente aqueles atravessados pelas violências de gênero. Este engajamento se evidencia, ainda, nos procedimentos em que aciona a alta tecnologia das crenças populares e expõe a desigualdade fundamentada na cristalização do conceito de técnica, como afirma o filósofo chinês Yuk Hui. Há cosmotécnicas, ele nos diz, e os gestos sensíveis de Thatiane querem romper com as monoculturas do pensamento, cujas consequências se concentram numa grave cadeia de extinções.
Espelhando-se na vida de organismos invisíveis à nossa percepção, a artista toma o próprio corpo como campo experimental e multiplicável: ela extrai pigmentos das ervas, incorpora fungos, tece hifas, costura moléculas, nomeia pelo bordado e alinhava dispositivos eletrônicos ao pulso vital dos materiais. Neste convívio diário, catalogado pela memória celular dos corpos e pela linguagem numérica da programação, a dimensão plástica das formas é quase sempre conduzida por agentes químicos curativos. Os saberes-fazeres escolhidos por Thatiane desviam-se, portanto, do rito industrial das máquinas, enveredando-se pela sobreposição restaurativa das dinâmicas orgânicas: o tecido que vem da fibra vegetal, por exemplo, parece retornar ao ponto iniciático da semente para, enfim, seguir o curso de sua transfiguração. A linguagem têxtil aparece, aqui, como afirmação crítica das urgências e potências que envolvem os ofícios artesanais, tensionando as assimetrias de valor estabelecidas entre materiais e técnicas ao longo da História da Arte.
Na cultura de obras que a artista alimenta e com a qual é alimentada, ativa-se, finalmente, uma experiência multissensorial em contraponto ao desestímulo de certas ambiências virtuais: as texturas têxteis, a transparência dos biopolímeros, o aroma dos chás e o enraizamento frágil, mas profuso, dos micélios convidam os sentidos ‒ nossos e dos seres com os quais fazemos corpo ‒ à imaginação cósmica do futuro. Um futuro mais entrelaçado, mais palpável, onde as formas se redesenham e crescem mutuamente, fertilizando novos modos de ser e estar em relação.
família-colônia, colônia-mãe
da vida que quer se sustentar sem ar
Sarah Coeli (2022)
pequenas tarefas femininas
aprender o labor da cozinha:
zeladora das fórmulas secretas instintivas
propagar as prosas domésticas: invocar e subsistir cultivar atividade reprodutiva, e repetitiva o que mesmo se repete: na repetição?
um nome repetido
assiduidade genética: mantém o ente e a família a mesma outra família
família-colônia, colônia-mãe
da vida que quer se sustentar sem ar
essa bactéria-fêmea, sem sexo reproduz e cultua a vida abrigada numa pele-tecido: comunidade
as estórias comunitárias
contadas por uma fisiologia ínfima do escondido do corpo é o que thatiane funda
laços ocultos: feitos com agulha
uma agulha estéril
desinfetada pelo sonido da clave em laboratório-cozinha uma agulha fértil
alimentada pela raiz
onde estão plantadas nossas avós
agulha que guarda no fio uma só vitalidade: a contaminação da memória
vida tramada pela fibra minúscula: compêndio da existência íntima foco de ânimo invisível
saber o que verdadeiramente corre em suas veias pelo rumor da corrente sanguínea
grau de vida: parece
um segredo
coagulado
tudo isso
alinhava um corpo de pesquisa que se quer sensível: ao corpo, aos corpos
ao âmago que se ama do próprio corpo
e ao círculo que faz dele dentro: de alguma parte
órgãos-cântaros: geram ciclos de cura em seu redondo desenho oco a inteligência de poder se preencher e verter sem início, sem meio, sem fim
o que se quer remediar?
circular o que o corpo rejeita
circular o que o que se aprende pelo corpo: com outros corpos circular o que se cartografa de um metabolismo gerador de perguntas e dados
dados do afeto
da alma biológica dos corpos
inscritos em cada nó silencioso do crochê, demoradamente bordados num livro que se pode, outrora, vestir
ela se incumbe do inviável ofício:
mensurar o corpo sem tamanho
aferir a latência da vida em estado poético-ativo inventariar incontáveis contos simbólicos que fabulam a vida hermética:
mímese das nossas entranhas
urdir cenários para se recontar,
a qualquer tempo,
as metafóricas lendas científicas, aliançada ao sublime- tecnológico
o encantamento
inoculado no que ninguém vê
e no rítmico diário monitorado das estufas,
thatiane mendes duque monta o álbum: da sua família contínuo dos cadernos mofados: de receitas